O Brasil corre o risco de perder todos os avanços conquistados na luta contra o tabagismo diante da disseminação dos cigarros eletrônicos, alertam especialistas.
O uso desses dispositivos se popularizou nos últimos anos, principalmente entre o público jovem e os adultos que veem nos produtos uma possibilidade de eliminar a dependência do tabaco. Apesar da proposta positivista, de abandono do vício, os chamados e-cigarettes, assim como os cigarros tradicionais, causam diversos malefícios aos usuários e às pessoas expostas indiretamente a eles. Os efeitos do cigarro tradicional no organismo de não fumantes já foram evidenciados e estampam a embalagem dos produtos.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) apontou a PTA (poluição tabagística ambiental) como a maior fonte de poluição em ambientes fechados, e o tabagismo passivo, a terceira maior causa de morte evitável em todo o planeta.
Em razão disso, a lei nº 12.546, de 14 de dezembro de 2011, proibiu categoricamente até mesmo produtos não derivados de tabaco, como é o caso dos cigarros eletrônicos. "É proibido o uso de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco, em recinto coletivo fechado, privado ou público", diz o texto.
Todos os vapers usados no Brasil são clandestinos. Isso porque a comercialização, importação e propaganda de todos os tipos de dispositivo eletrônico para fumar estão proibidas por decisão da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) desde 2009.
Os DEFs (dispositivos eletrônicos para fumar) podem utilizar muito mais nicotina que os cigarros tradicionais.
Para a Andréa Reis, chefe da Divisão de Controle do Tabagismo do Inca (Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva), os e-cigarettes foram criados para induzir os usuários ao tabagismo, apesar dos sérios prejuízos à saúde que ele causa, por meio da queima ou vaporização.
"O dispositivo eletrônico para fumar foi realmente criado para ser a porta de entrada para o tabagismo" alega. Uma pesquisa conduzida pela UFPel (Universidade Federal de Pelotas) e pela organização internacional Global Strategies mostra que a prevalência de adultos tabagistas caiu de 14,7%, no período pré-pandemia, para 12,2%, nos primeiros três meses de 2022.
Por outro lado, o estudo traz números que acendem um alerta. Entre jovens de 18 a 24 anos, quase 20% declaravam ter experimentado cigarro eletrônico entre janeiro e março deste ano. Na população geral, foram 7,3%.
Outro estudo, publicado no último dia 16 na revista científica Addiction, mostra que, mundialmente, um em cada 12 adolescentes de 13 a 15 anos havia consumido cigarro eletrônico no período de 30 dias anterior ao questionário.
O pneumologista Flávio Arbex considera que a difusão do cigarro eletrônico está fazendo com que a sociedade perca tudo o que conquistou com as leis antitabagismo, pois as pessoas estão utilizando-os em locais inadequados, prejudicando outros indivíduos e a si próprias.
O vapor dos e-cigarettes pode, por exemplo, estimular o consumo desses produtos. O médico afirma que, a depender da proximidade, do tempo de convívio, da carga e do tipo de exposição, o fumante passivo pode desenvolver uma dependência.
Uma das substâncias que mais colaboram para essa situação é a nicotina, independentemente da porcentagem. “Não existe nível seguro de nicotina que não cause dependência”, orienta o pneumologista.
A principal maneira de combater essas situações, segundo o especialista, é banir definitivamente o cigarro eletrônico. Individualmente, deve-se evitar ficar próximo a pessoas que estão utilizando o dispositivo, mas os próprios estabelecimentos têm que proibir o uso em suas dependências.
A OMS considera que o mundo vive uma epidemia global do tabaco e propõe medidas para contenção do produto. Esse combate está sendo mascarado pelos cigarros eletrônicos, que são tão nocivos quanto os convencionais.
“O grande problema do dispositivo eletrônico para a política nacional de controle do tabagismo é a gente trazer para normalidade uma coisa que a gente já sabe que faz mal, já tem certeza que vai ser um retrocesso e que vai ser bastante danoso para toda a população”, afirma a especialista do Inca. Fumantes passivos também em risco
Além de os cigarros eletrônicos serem prejudiciais ao usuário, que se torna dependente da nicotina mais rapidamente, as pessoas ao redor podem respirar cargas de metais pesados, como níquel e arsênio, e acetato de vitamina E. Essas substâncias, de acordo Arbex, são extremamente danosas e não se dissipam apenas na fumaça.
“As substâncias que estão no cigarro eletrônico podem se depositar em superfícies também. Quanto mais fechado o lugar, maior o depósito em objetos e mesas, que a pessoa pode tocar, levar a mão ao olho e isso pode causar complicações”, afirma.
Ainda assim, tornou-se habitual a utilização dos vapers em dependências coletivas sem saídas de ar efetivas, como bares e casas de festa.
Não há ainda dados conclusivos acerca dos danos causados aos fumantes passivos de cigarros eletrônicos. Evali: doença pulmonar pode deixar sequelas
Há relatos, segundo o médico, de jovens que evoluíram para óbito rapidamente após o uso de cigarro eletrônico.
“Quando você inala uma fumaça com tanta substância, isso chega ao pulmão e pode causar lesão inflamatória, do tipo Evali [sigla em inglês para lesão pulmonar induzida pelo cigarro eletrônico], por exemplo. Desde lesão pulmonar até efeitos sistémicos”, diz Arbex.
A Evali foi relatada pela primeira vez em 2019 nos Estados Unidos. Há fortes indícios de que as substâncias presentes no líquido desse tipo de cigarro afetam o pulmão dos usuários e causam uma reação inflamatória no órgão.
Segundo dados recentes divulgados pela Anvisa até o dia 28 de abril de 2022, o Brasil totalizou oito casos da doença em São Paulo, Espírito Santo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Os pacientes tinham entre 21 e 41 anos, em sua maioria do sexo masculino.
O caso mais recente documentado pela Anvisa foi de um paciente de 37 anos, que não informou gênero, ex-fumante e fazia uso do cigarro eletrônico saborizado, com sistema pod.
A descrição dos sintomas foi caracterizada como "sensação de desmaio, dor muito forte no meio peito, pensava que estava infartando". A situação se sucedeu após três meses de utilização do produto. O paciente passou dez dias hospitalizado.
Em quatro dos casos, os doentes precisaram ser internados. Além do mais, metade deles permaneceu com sequelas da doença após a alta.
Arbex explica que não há motivo exato para o desenvolvimento da Evali, pois o problema não está somente no período de exposição às substâncias do cigarro eletrônico.
“Não é uma questão de tempo, às vezes pode ser a substância. Tem substâncias que a pessoa fuma que estão mais ligadas à Evali, tipo acetato de vitamina E, até o THC [o principal componente da maconha], que muitas pessoas usam. É uma grande armadilha, ela pode acontecer em exposição curta mesmo”, exemplifica o médico.
Um documento elaborado pelo Ministério da Saúde, em conjunto com o Inca, identificou 21 elementos presentes na fumaça dos vapers que podem trazer danos à saúde. Entre eles estão: chumbo, enxofre, titânio, cobre e lítio.
A especialista do Inca explica que a indústria do tabaco, mesmo com ciência da existência dessas substância danosas, vai seguir normalizando a utilização dos DEFs e camuflando os seus malefícios.
R7
Foto: EVA HAMBACH/AFP