- Detalhes
- Saúde
Grávidas negras (pretas e pardas) que buscaram atendimento médico com sintomas de Covid-19 durante a pandemia do coronavírus chegavam no pronto-atendimento com quadros clínicos mais graves do que as gestantes não negras. A constatação é de uma pesquisa de mestrado realizada na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) que partiu da pergunta: “a cor da pele importa?” e analisou dados coletados pela Rebraco (Rede Brasileira de Estudos da Covid-19 em Obstetrícia) em 15 maternidades do país entre fevereiro de 2020 e fevereiro de 2021.
Para chegar aos resultados, a pesquisa cruzou informações de 710 grávidas de várias regiões do Brasil e avaliou características sociodemográficas, testagem do coronavírus, tempo para procurar o atendimento médico após início dos sintomas e desfechos após o parto. Das 710 participantes, 301 eram mulheres que se autodeclararam pretas ou pardas e 409 não negras.
Um dos itens que indicava a gravidade dos quadros clínicos das pacientes foi o índice de saturação de oxigênio no momento do atendimento. Em uma pessoa saudável, sem doença pulmonar crônica, esse índice deve variar entre 95% e 100%. A pesquisa constatou que as gestantes negras apresentavam saturação abaixo de 93% quase quatro vezes mais frequentemente do que as não negras.
Além disso, a pesquisa observou que mais mulheres negras precisaram ser internadas na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e necessitaram de intubação (suporte mecânico de oxigênio) – foram 27 negras e 21 não negras. Isso também demonstra que os quadros clínicos delas eram mais complicados e exigiam mais suporte. Outra constatação do estudo é que entre as mulheres negras havia uma maior proporção de adolescentes, menor escolaridade, menor IMC (Índice de Massa Corporal) e mais casos de gravidezes não planejadas.
Racismo na saúde Mas, afinal, o que explica essa disparidade? Segundo a pesquisadora Amanda Dantas da Silva, médica ginecologista e obstetra doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Tocoginecologia na Unicamp, não existe uma resposta única e sim um conjunto de fatores que levam essas mulheres a terem um pior acesso à saúde – entre eles, a dificuldade de acesso, tanto em questões de locomoção quanto em questões sociais relacionadas à emprego, por exemplo.
“É uma cascata de eventos. Em geral, essas mulheres vivem em regiões periféricas e têm piores condições socioeconômicas, o que faz elas terem mais dificuldades tanto para acesso no sentido de transporte quanto na questão da distância. Elas moram longe do serviço que é referência para gestantes. Elas também enfrentam mais dificuldades para deixar o trabalho, muitas não têm com quem deixar as crianças. E tem ainda a questão da percepção de sofrer discriminação. Muitas delas evitam procurar serviços médicos porque acham que vão sofrer preconceito”, afirmou Silva.
Em relação à mortalidade, quatro gestantes que participaram do estudo morreram: três eram negras e uma não negra. Segundo Silva, estatisticamente o número não é relevante diante da quantidade de pessoas avaliadas, mas a proporção três para um chama a atenção e merece uma avaliação mais cuidadosa.
“Essas mulheres demoram mais para buscar atendimento. O que a gente nota é que não chegar ao serviço de saúde é só a ponta do iceberg porque temos um conjunto de fatores prévios a isso, que incluem piores condições socioeconômicas da população negra, a gente tem o viés implícito, a percepção de sofrer discriminação e racismo. Todos os fatores em conjunto levam a maior dificuldade de acesso ao serviço de saúde”, avalia a pesquisadora.
A médica ginecologista e obstetra Rita Sanchez, coordenadora do setor de Medicina Fetal do Hospital Israelita Albert Einstein, concorda que entender as razões para a demora dessas mulheres buscarem atendimento é uma discussão profunda e complexa, que passa pela questão do racismo.
“Muitas vezes, quem não estuda as influências do racismo na sociedade e na saúde talvez não consiga enxergar a complexidade dessa questão. Em várias culturas, as mulheres de pele cor preta são subjugadas desde a infância e aprendem que não têm direito aos mesmos recursos que as mulheres de pele não preta. Elas ouvem histórias de suas famílias e aprendem que se reclamarem, seja de dor ou de qualquer outro sintoma, podem ser discriminadas”, diz a médica do Einstein.
Silva ressalta que os resultados demonstram que existem disparidades raciais na saúde e existe um racismo institucional, estrutural e cultural que precisa ser combatido porque ele reflete nos cuidados à saúde dessas pacientes. “O racismo é um sistema de opressão que se baseia em características fenotípicas para justificar uma desigualdade de acesso. A base na nossa sociedade é racista e isso tem um reflexo negativo direto nos resultados da saúde”, diz a médica.
Ainda segundo a pesquisadora, dados na literatura demonstram que as pessoas negras sofrem diferenças em relação à saúde. No caso da ginecologia e obstetrícia, as mulheres negras fazem menos consultas de pré-natal, sofrem mais complicações em decorrência de pré-eclâmpsia, têm mais hemorragia pós-parto, recebem menos medicação para dor e menos analgesia no trabalho de parto.
“Existe diferença no tratamento das pessoas baseada na cor da pele. As mulheres negras sofrem discriminação de gênero, de cor de pele, por questões socioeconômicas. O que a gente nota é que não chegar ao serviço de saúde é só a ponta do iceberg porque temos um conjunto de fatores prévios a isso. A gente precisa se reconhecer como sociedade racista para ampliar o debate sobre o racismo em saúde porque ele continua muito presente”, disse.
Na avaliação de Sanchez, os resultados dessa pesquisa da Unicamp são muito importantes pois vêm corroborar o que o Einstein já observou em duas ações colaborativas realizadas em conjunto com o IHI (Institute for Healthcare Improvement): uma chamada “Abraço de Mãe” e a outra chamada “Todas as mães importam”. Nessas ações, realizadas em 19 e 37 hospitais públicos espalhados em várias regiões do Brasil, um dos principais direcionadores de melhoria no atendimento à saúde era justamente classificar na admissão do hospital as pacientes pela cor da pele, e tratar as mulheres pretas como mais vulneráveis.
“Elas sentem dor como todas as mulheres, mas não reclamam. Elas se sentem mal, mas não reclamam. Elas não conseguem o acompanhamento pré-natal adequado por várias questões citadas [falta de conhecimento, de oportunidade, de transporte, falta de recurso financeiro], mas não reclamam. Por isso chegam mais tarde no atendimento à saúde. Portanto, devemos “dar mais voz a elas”, mostrar que estão em um ambiente seguro e que podem falar o que sentem. Assim, conseguiremos fazer o diagnóstico dos problemas de saúde das mulheres de pele preta e atuar a tempo”, finalizou Sanches.
Por Fernanda Bassette, da Agência Einstein
Foto: Freepik