Ainda há muitas dúvidas acerca da resposta imune e da duração dessa proteção quando se trata do coronavírus. Casos de reinfecção e a vivência da segunda onda de contágio na Europa afastam a ideia de uma imunidade duradoura e coletiva. É provável que todos tenham contato com o vírus da covid-19 pelo menos uma vez na vida, afirma Ana Karolina Barreto Marinho, especialista em alergia e imunopatologia e coordenadora do Departamento Científico de Imunização da ASBAI (Associação Brasileira de Alergia e Imunologia).
"Mas só alguns desenvolverão a doença. Há pessoas jovens que também pegaram [coronavírus] e desenvolveram sintomas mais graves, embora idosos e pessoas com comorbidades sejam do grupo de risco. Então, não dá para prever quem vai ter sintomas ou não", destaca.
Doença sazonal De acordo com ela, a grande aposta de especialistas é que a covid-19 se torne uma doença sazonal como a gripe. Isso quer dizer que a doença será típica de uma determinada época e estação, no caso, o inverno.
"Por isso a importância de termos uma vacina e também tratamentos e remédios eficazes para aqueles que venham a adoecer", observa. A especialista avalia que encontrar uma vacina segura e eficaz vai trazer a superação do cenário pandêmico, mas o vírus continuará presente nas comunidades.
"Possivelmente, vamos ter uma ou mais vacinas eficazes, com isso vai haver o controle da pandemia. E, além disso, a população vai adquirir uma imunidade natural, esses fatores vão contribuir para a menor circulação [do vírus]", analisa.
Conhecimento sobre o vírus exige tempo A OMS (Organização Mundial da Saúde) já chegou a afirmar que entre 65% e 70% da população deve ser infectada com o coronavírus para que imunidade de rebanho seja alcançada, mas o mundo ainda está muito distante dessa taxa. Além disso, o órgão frisou que essa é apenas uma estimativa e mais estudos são necessários.
"Não sabemos qual a porcentagem da população precisaria entrar em contato com o coronavírus. Vão ser necessários anos de história para saber. Isso varia de acordo com cada infecção. No caso do sarampo taxas de 95% a 98% [de imunização] garantem que não haja circulação", exemplifica Ana Karolina. A especialista acrescenta que, a princípio, parece que o coronavírus não tem alta taxa de mutação. Esse fator, por sua vez, contribuiria para a imunidade prolongada. "Mas vamos observar isso ao longo do tempo. A gente ainda está vivendo a pandemia. Não dá para saber a taxa de mutação e como ele vai se comportar", conclui.
Não foi divulgado se o voluntário brasileiro que morreu estava no grupo que recebeu a vacina de Oxford durante a última fase de testes do imunizante. Mas a decisão de continuar com a pesquisa levanta a hipótese de que ele teria recebido o placebo. Trata-se de um estudo randomizado, o que significa que essa divisão é feita de maneira aleatória.
De acordo com Ana Karolina Barreto Marinho, coordenadora do Departamento Científico de Imunização da ASBAI (Associação Brasileira de Alergia e Imunologia), os participantes são cadastrados pelos pesquisadores em um sistema online, que gera um número correspondente para cada um e escolhe em qual grupo eles irão ficar.
"Existe um software que decide qual kit a pessoa vai receber [placebo ou vacina]. Quando eu clico em randomizar, o sistema me dá o número do paciente e do produto que ele vai receber" explica.
O estudo também é duplo-cego, ou seja, pesquisadores e voluntários não sabem quem tomou a vacina ou o placebo até o final dos testes. "O pesquisador pode ver o número sorteado, porque não sabe ao que ele corresponde", destaca.
O placebo escolhido para os testes com o imunizante de Oxford foi a vacina da meningite. Ana Karolina explica que além de outro imunizante já padronizado muldialmente, é possível escolher outras opções, como soro fisiológico e água destilada.
"O placebo sempre tenta se aproximar ao máximo do produto que está em estudo. Se a vacina é injetável e intramuscular, ele também será". exemplifica. Essa semelhança serve para evitar que os pesquisadores sejam influenciados em suas conclusões e pacientes desenvolvam sintomas emocionais.
A especialista afirma que quando ocorre um evento adverso grave, a empresa farmacêutica e os cientistas decidem se vão acessar os dados do paciente e saber qual substância ele recebeu. Mas, na maioria das vezes, essas informações ficam restritas ao comitê independente que vai investigar se o acontecimento teve relação com a vacina ou não."Se concluírem que não há relação, os testes continuam".
Foi o que aconteceu com os estudos da vacina de Oxford. Em comunicado divulgado pela imprensa britânica, a universidade explicou que a morte do voluntário foi objeto de uma "cuidadosa avaliação" na qual não foram encontrados elementos preocupantes sobre a segurança da vacina.
Em setembro, uma voluntária do Reino Unido também teve uma grave reação adversa. A diferença é que, nesse caso, o ensaio clínico foi paralisado por alguns dias, algo que não aconteceu dessa vez. Isso indicaria que o brasileiro estava no grupo do placebo, segundo uma fonte com conhecimento da situação ouvida pela agência de notícias Reuters.
Ana Karolina avalia que o fato de as pesquisas não terem sido suspensas após a morte do voluntário reforça a tese de que "a vacina é segura e dá para confiar", pois, se o óbito estivesse relacionado ao imunizante, aconteceria a interrupção.
A importância da fase 3 Ela explica que a fase 3 dos testes em humanos, a última antes de uma possível aprovação por órgãos reguladores, é a mais importante para comprovar a segurança e eficácia da vacina porque envolve milhares de pessoas, com perfis distintos, que vivem suas vidas normalmente, sem muito controle por parte dos pesquisadores - quando comparada às etapas anteriores.
"Na fase 3 o estudo é uma simulação da vida real. A pessoa toma a vacina e vai para a casa, vai trabalhar", descreve. "Ela volta depois de certos períodos, conforme uma agenda estabelecida, e também existe um acompanhamento remoto, por telefone", acrescenta.
A porta-voz da Organização Mundial da Saúde (OMS), Margaret Harris, afirmou nesta sexta-feira (23) que a entidade escolhe as vacinas que apoia com base em critérios científicos, e não pela nacionalidade da empresa que as desenvolvem. A declaração foi dada após Margaret ser questionada sobre a decisão de Jair Bolsonaro de não comprar vacinas chinesas.
"Nós escolhemos a ciência. [A questão] não é a respeito da nacionalidade, e essa é a beleza de ser multilateral, esse é o ponto da ONU. Nós escolhemos a ciência e deveremos escolher a melhor vacina. E como se sabe, não vamos apoiar nenhuma vacina até que seja provado que ela teve o mais alto padrão de segurança e o nível certo de eficácia."
No começo desta semana, o Ministério da Saúde anunciou um protocolo de intenção de compra de 46 milhões de doses da CoronaVac, a vacina contra o coronavírus desenvolvida pela empresa chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan.
Na quarta-feira (20), o presidente Jair Bolsonaro afirmou que ordenou o cancelamento do acordo.
Politização da vacina Em entrevista, a vice-diretora-geral da OMS, Mariângela Simão, disse que das 10 vacinas em estados avançados de pesquisa, 4 são chinesas, uma é russa e cinco outras são de multinacionais.
"O Brasil tem condições de avaliar, por meio da Anvisa, porque uma vacina não pode entrar no mercado antes de terminar a fase 3", disse ela. "Hoje o mundo depende de muitos produtos farmacêuticos que são oriundos da China: muitos dos princípios ativos farmacêuticos, boa parte das plantas, das fábricas de produção, por exemplo, antibióticos são chinesas, vêm da China."
Há politização em torno do tratamento da Covid-19, mas o importante, segundo a vice-diretora-geral da OMS, é que a autoridade sanitária (no caso brasileiro, a Anvisa), esteja atenta.
Após 10 meses da descoberta, a covid-19 já tirou a vida de mais de 1 milhão de pessoas em todo o mundo e a pandemia ainda não está sob controle. Além disso, não há nenhum medicamento específico para tratar a infecção. Mesmo assim, avanços conquistados no tratamento e conhecimento da doença estão ajudando a lidar melhor com suas consequências, o que reduz o risco de morte.
Os pneumologistas Carlos Carvalho, Diretor da Divisão de Pneumologia do InCor (Instituto do Coração) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, e José Rodrigues Pereira, da BP - A Beneficência Portuguesa de São Paulo, comentam o que mudou desde o início da pandemia e como essas transformações foram importantes para evitar mais complicações em pacientes com a doença causada pelo coronavírus. Potencial da doença e mudança na abordagem terapêutica No início, os especialistas pensavam que a covid-19 atingia apenas as vias respiratórias. Porém, eles perceberam que o coronovírus circula no sangue, o que faz com que a doença causada por ele seja sistêmica e atinja diversos órgãos. Além disso, foram adquiridos conhecimentos sobre a resposta imune - que varia de acordo com o paciente e a carga viral no organismo - e os perfis que fazem parte do grupo de risco.
Esses conhecimentos mudaram a abordagem terapêutica adotada para tratar os pacientes, como explica Carvalho.
"A partir do instante que eu sei que o paciente pode ter arritmia, fenômenos trombóticos ou lesões renais, fico atento aos menores sinais dessas complicações. Se eu sei que pode ocorrer trombose, uso o anticoagulante de maneira mais precoce. Se sei que a inflamação exagerada vai me atrapalhar, uso corticoides. Vou adaptando o tratamento", descreve.
Técnicas utilizadas Os pneumologistas lembram que, com base na experiência da China, a recomendação era não utilizar a ventilação não invasiva, feita com o uso de máscara, mas esse recurso se tornou essencial para o tratamento de pacientes com quadros graves de covid-19, que apresentam insuficiência respiratória,
"Quando os chineses começaram a lidar com a doença, muitos profissionais de saúde se contaminaram e morreram, então eles falaram 'não use ventilação não invasiva porque isso dissemina o vírus pelo ar e contamina quem está em volta do paciente'. A orientação era intubar direto e ir para a ventilação invasiva", relata Carvalho.
Porém, de acordo com ele, essa regra mudou quando a covid-19 chegou na Europa. "Lá, eles têm um tipo de ventilação não invasiva feita com uso de capacetes. Com isso, tiveram um avanço potente no tratamento, o que preveniu intubação e reduziu a letalidade da doença", explica.
Pereira explica que, nos casos em que a ventilação é feita por meio de máscara, ela é hermeticamente fechada, o que impede a disseminação do vírus. "A gente usa um aparelho chamado CPAP, que vai mandar o ar em alta pressão para os pulmões. Ele tem um tubo que se conecta a uma máscara hermeticamente fechada", descreve.
Os especialistas citam também a pronação, técnica que consiste em virar o paciente de bruços. Este é um procedimento antigo, que já era usado para tratar casos graves de outras doenças respiratórias.
"A pronação começou na UTI. Já é uma técnica utilizada, por exemplo, na SARA [Síndrome da angústia respiratória aguda] e feita há vários anos em pacientes intubados", detalha Pereira.
Ele explica que quando o paciente fica deitado de barriga para baixo, ocorre uma melhora da oxigenação dos pulmões.
Segundo Carvalho, o paciente pode ficar nessa posição por no máximo 16 horas, pois esse é o limite para evitar complicações, como escoriações na pele. Ele tem a impressão de que existem casos isolados em que a técnica ajuda mesmo aqueles que não estão intubados, mas não há comprovação científica sobre isso.
Medicamentos Pereira afirma que em relação ao uso de medicamentos havia "algumas verdades encaradas como absolutas viraram grandes mentiras". O primeiro exemplo que ele cita é o da cloroquina. "Hoje sabemos que ela não tem efeito nenhum, seja em casos leves ou graves", destaca.
Houve também uma mudança drástica sobre a utilização de corticoides, já mencionados por Carvalho. "Era proibido dar cortisona, pois pode promover a queda de imunidade e, com isso, o paciente teria maior replicação viral e gravidade [da covid-19]", lembra.
No entanto, a ciência mostrou que o efeito anti-inflamatório desses medicamentos são muito eficazes no tratamento de pacientes com quadros graves, pois eles sofrem com a inflamação causada pela reação exagerada do sistema imunológico ao vírus.
"Estudos mostraram que os corticoides são extremamente benéficos e diminuem a letalidade da covid-19", destaca Carvalho. "Então, quando esses pacientes precisam de muito oxigênio e vão para a UTI, há indicação formal [do uso] desses medicamentos", completa.
Segundo Pereira, os corticoides também trazem vantagens para pessoas que já estão recuperadas da covid-19, pois ajudam a diminuir os danos causados nos pulmões.
Protocolos de atendimento e compartilhamento de informações Ainda em março, o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP validou com a Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo um protocolo de atendimento que indica linhas de cuidado para todos os pacientes com covid-19, sejam casos leves ou graves.
Esse material está disponível para profissionais de saúde - inclusive por meio de aplicativo - e suas diretrizes são atualizadas conforme surgem novos conhecimentos.
Leia também: Voluntário de teste da vacina de Oxford no Brasil morre
"Há explicações sobre o uso de EPIs [equipamentos de proteção individual], como é feita a intubação, o passo a passo para fazer a pronação. Tem uma série de aulas e materiais disponibilizados", detalha Carvalho. "Além disso, começamos a fazer o treinamento de equipes de diversos hospitais e estamos moonitorando, além dos nossos, até 600 leitos de UTI, a distância", finaliza.