Lugares tão diferentes, distantes e aparentemente sem relação entre si. Palavras repletas de sonoridade ou significados, mas embaralhadas pelo país inteiro. Batismos insólitos, à espera do casamento espirituoso. Piadas prontas, porém carentes da oportunidade. Faltava alguém ter a ideia e o trabalho de catá-las. O cartunista Nildão teve. Em construções curtíssimas, combinou nomes de cidades, não acrescentou absolutamente mais nada e publicou um livro com bastante lirismo e humor.
É tão simples, que só com exemplos se entende bem a receita:
"Buriti Alegre. Bofete. Buriti Bravo", escreveu, recorrendo a três municípios de Goiás, São Paulo e Maranhão.
"Riachinho, Saltinho. Rio Grande, Salto Grande. Riachão, Tombos", gracejou, conectando Tocantins, São Paulo, Rio Grande do Sul, Pará e Minas.
"Santa Cecília do Pavão. Aparecida", pegou emprestado de paranaenses e paulistas.
"Quedas do Iguaçu. Santo Antônio do Rio Abaixo", juntou Paraná e Minas.
- Eu me deparei com os 5.565 municípios brasileiros. Neste universo variado que vai de nomes líricos, encantadores para nomes absurdos, frios, estranhos, percebi que dá para fazer uma poética, para criar contrapontos num livrinho tipo haikai. E ele todo é assim - afirma o autor, que consultou uma lista de cidades em ordem alfabética.
A brincadeira começa no título, "Alegria Passa-e-Fica", que aproxima os extremos e quase xarás Rio Grande do Sul e Rio Grande do Norte.
- Quando vi o jogo de palavras, que alegria é uma forma de pacificar, falei: 'Eu fechei!' - diz Nildão, que ilustrou a capa de Terra Magazine no espaço do banner, entre sua criação em abril de 2006 e março de 2011.
Logo nas primeiras páginas da nova publicação, ele reservou seções de homenagens que seguem a temática da obra. Um coração apresenta os lugares mais queridos: sua Monte Horebe natal, na Paraíba, as adotivas baianas Jacobina, Senhor do Bonfim e Salvador. Em seguida, um cérebro reúne as inspiradoras: as cidades imaginárias de Pasárgada, Gotham City, Macondo e Chico City. E o convite à leitura começa com a sugestiva Pongaí, localizada em São Paulo.
- Fecho o livro com uma chamada Paraí, do Rio Grande do Sul - avisa, inveterado fã de trocadilhos.
A introdução não foge à regra do jogo: "Alegria, Bom Sucesso, Harmonia, Parati. É como se fosse uma oferta (ao leitor)", comenta Nildão, que, na edição, teve ajuda do antropólogo Renato da Silveira, amigo de antigas parcerias.
- Eu sabia que estava com uma mina na mão, mas não sabia o que era. Para controlar, tentei classificar os nomes em "poéticos", como Encantado, Feliz, Alegria, Não-me-Toque (todos gaúchos). Aí fui classificar os nomes absurdos: Braço do Troncudo (SC), Morro Cabeça no Tempo (PI)... Você começa a descobrir esse Brasil profundo, que você não sabe como tem nomes tão estranhos. Não é invenção minha. Existem mesmo. Tinha hora que queria uma (palavra), mas não achava. Não posso modificar, né? Não pode forçar a barra.
Dance e leia
"Alegria Passa-e-Fica" foi lançado na quinta-feira, 29, na aniversariante do dia: Salvador.
- Todo ano, eu lanço um livro e faço uma festa dançante. O ingresso é trocado pelo livro. Da tiragem de mil exemplares, geralmente consigo colocar 400 na mão das pessoas num dia só. São formatos pequenos, não são trambolhos. E você pode pegar na saída - ensina sua tática o autor, que também vende seu acervo em www.nildao.com.br.
Ele tem experiência nisso. É seu 15º livro em três décadas. Nos últimos nove anos, foram nove. Mas esta produção anual começou despretensiosamente:
- Emprestei uma grana para o cara da gráfica. Depois ele me disse que não tinha como me pagar: 'Se quiser, a gente pode fazer um livro por ano'. Aí tive que ter disciplina - conta Nildão, que na próxima obra, já pronta, retoma o fetiche de manipular ícones pop.
A todo instante, ele interrompe a conversa sobre "Alegria Passa-e-Fica". Para exemplificar. "Ó essa aqui: Fartura. Anta Gorda. Volta Redonda". Não consegue parar, entusiasmado. "Exu, Encruzilhada do Sul, Armação dos Búzios", gargalha.
- Fiquei muito feliz. Foi praticamente um surto. Achei que enlouqueceria. Ia dormir com duas (palavras), procurando uma terceira. Depois, sobrou material. Usei 316 cidades em 96 páginas.
Em 8 de dezembro de 2010, o artista gráfico teve o estalo e iniciou a pesquisa. Pensou que ela poderia render umas páginas num próximo livro. "Talvez um capítulo". Quatro meses depois, tinha tudo absolutamente pronto, aguardando apenas a periodicidade de seus lançamentos anuais.
- É um humor que requer uma cumplicidade e um acabamento melhor. Estou me refinando nisso. Minha lógica é agregar conteúdo original.
De fato, não faltam provas de criatividade. "Cipó. Bom Jesus das Selvas", sacou. "Não-me-Toque. Combinado. Passabém", encadeou uma espécie de diálogo. Manobrou entre Roraima e Pernambuco: "São João da Baliza. Lagoa do Carro". Interligou semanticamente as mineiras Dores do Indaiá e Coluna. Recorreu à malícia ao unir a paranaense Rolândia à sul-mato-grossense Anaurilândia. Relacionou em versos consequentes: "Santa Ponte Pensa, São José da Lagoa Tapada, Tendências". Pilheriou: "Presidente Figueiredo. Presidente Médici. Carrancas".
Fez Minas iluminar o Pará: "Luz... Breu Branco". Ainda inferiu: "Floresta. Machados. Feliz Deserto". "Nova Iorque, Buenos Aires, Barcelona, Filadélfia. Currais", ironizou, numa rodovia imaginária entre Maranhão, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Bahia e Piauí.
- Criei como se fosse uma nova língua com cidades do interior da Bahia, do Rio Grande do Sul e de Goiás: "Maiquinique, Nonoai, Iuiú, Americano do Brasil".
Explorou bastante a fonética. Como em "Itaquaquecetuba, Patos".
- Tururu, Tuntum. Baião. São Luiz Gonzaga - lê Nildão, empolgado com o achado. - Que ritmo! Você acredita, pô?
Em Santa Catarina, Paraíba, Minas e Rio Grande do Sul, ele garimpou: "Ouro, Diamante, Esmeraldas, Cristais. Fortuna de Minas. Joia!". Tateando por brechós geográficos de Pará, Pernambuco, Bahia e São Paulo, montou até um figurino de cantor da Jovem Guarda: "Colares. Correntes. Wanderley... Cardoso".
- Minha praia é o humor - admite Nildão, que se diverte genuinamente ao explicar o livro, recitando seus poemas cartográficos:
"Luminárias... Montes Claros".
"Placas, Pintadas... São Tomé das Letras".
"Saudades, São José dos Ausentes".
"Lages, Torres, Viadutos, Santa Terezinha do Progresso".
"Cajueiro, Limoeiro, Goiabeira, Macieira, Cerejeiras, Bananeiras... Chácara".
"Fama. Onça do Pitangui".
"Confins, Solidão".
"Rio do Fogo. Ventania. Mato Queimado".
"Gado Bravo, Curral Velho. Nossa Senhora do Socorro".
"Canoas. Rio Crespo. Afogados da Ingazeira".
"Raposa. Presidente Tancredo Neves".
"Lençóis. Travesseiro. Rio Sono. Bom Repouso".
Um amigo que trabalha com publicidade propôs realizar um documentário, relata Nildão.
- A gente vai nessas cidades para saber a origem dos nomes, conhecer as figuras interessantes delas - planeja o premiado cartunista.
O difícil vai ser Nildão selecionar apenas algumas rotas preferidas.
- Olha isso: "Touros, Rodeio. Bezerros, Recreio". Você ainda pega uma sonância! Outra: "Formigas. Varre-Sai". Mais uma, mais uma...
Terra