Experimentos conduzidos na Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto indicam que o novo coronavírus é capaz de infectar e levar à morte diferentes tipos de linfócitos – células-chave na defesa do organismo contra patógenos. Não se sabe ainda se há queda na imunidade decorrente desse ataque e qual seria a sua duração, mas os pesquisadores não descartam a possibilidade de a infecção deixar algum tipo de sequela no sistema de defesa.
Resultados da pesquisa, apoiada pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), foram divulgados no repositório bioRxiv. O artigo está em processo de revisão por pares.
“Logo no início da pandemia percebeu-se que a linfopenia [queda acentuada na contagem de linfócitos do sangue] era uma alteração hematológica frequente em pacientes com COVID-19 hospitalizados e que esse quadro estava associado a um prognóstico ruim, ou seja, maior risco de intubação e morte. Mas até agora não estava claro qual era a causa do problema”, conta à Agência FAPESP o virologista Eurico Arruda, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) e coordenador da investigação.
Durante uma infecção viral, explica o cientista, é esperado que parte das células de defesa saia da circulação e migre para o tecido afetado para ajudar no combate aos invasores. Contudo, autópsias de pacientes que morreram em decorrência da síndrome respiratória aguda grave associada ao SARS-CoV-2 mostraram que a quantidade de linfócitos presente nos tecidos infectados não era suficiente para explicar o quadro de linfopenia detectado quando essas pessoas ainda estavam internadas.
“Certamente deveria haver outro mecanismo envolvido. Decidimos então investigar se as células de defesa de pacientes com COVID-19 tinham o vírus em seu interior. Alguns grupos tinham descrito que a carga viral era praticamente indetectável no sangue, mas eles tinham olhado para o fluido como um todo. Nós isolamos apenas as células mononucleares [grupo que inclui monócitos e linfócitos] e fizemos uma espécie de concentrado de linfócitos”, explica o pesquisador.
Antes de analisar os leucócitos de pacientes, porém, os pesquisadores fizeram diversos experimentos com amostras sanguíneas de cinco voluntários saudáveis para testar a hipótese de que o SARS-CoV-2 seria capaz de infectar e matar linfócitos.
O concentrado de células mononucleares obtido a partir do sangue de doadores sadios foi incubado com o vírus durante dois dias. Com um anticorpo capaz de reconhecer antígenos do vírus no interior das células, os pesquisadores comprovaram que o processo de infecção tinha ocorrido. As análises mostraram que os monócitos foram as células mononucleares mais suscetíveis ao SARS-CoV-2 (44% estavam infectadas), seguidos pelos linfócitos T CD4 (responsáveis por coordenar a defesa imunológica por meio da liberação de moléculas sinalizadoras conhecidas como citocinas; 14%), linfócitos T CD8 (capazes de reconhecer e matar células infectadas pelo vírus; 13%) e linfócitos B (os produtores de anticorpos; 7%).
A carga viral no concentrado celular foi medida por RT-PCR – o mesmo teste molecular feito para diagnosticar a COVID-19 em pacientes – após seis, 12, 24 e 48 horas. Observou-se um aumento consistente da quantidade de vírus, que chegou a ser 100 vezes maior na última análise. Tal resultado indicava que o microrganismo não apenas tinha entrado nas células mononucleares de voluntários como também estava se replicando em seu interior.
“Quando tratamos a cultura com um composto capaz de inibir a protease usada pelo SARS-CoV-2 para se replicar, observamos uma redução importante da carga viral. Esse é mais um indício de que o vírus estava se replicando nessas células, mas ainda não sabemos em quais delas exatamente”, afirma Arruda Neto.
Em outro experimento, o grupo tentou bloquear a infecção com um inibidor de ACE2 – a proteína usada pelo microrganismo para entrar na célula humana, normalmente expressa em baixas quantidades nas células mononucleares do sangue.
“O tratamento com inibidor de ACE2 reduziu a carga viral na cultura, mas não a aboliu totalmente, o que sugere a existência de um mecanismo alternativo de infecção em células linfoides. Isso não é algo raro entre os vírus, que podem usar variadas moléculas para se ligar a diferentes tipos de células, a exemplo de HIV e adenovírus.
Ao investigar mais detalhadamente os linfócitos T CD4 e T CD8 infectados, os cientistas notaram que a entrada do vírus desencadeou um mecanismo de morte celular programada conhecido como apoptose. Segundo Arruda, essa é uma possível explicação para a linfopenia observada em pacientes com COVID-19.
Infecção
A etapa seguinte da pesquisa foi feita com células mononucleares de 22 pacientes internados em Unidade de Terapia Intensiva (UTI), com quadros moderados ou severos de COVID-19. O material foi coletado entre os dias 7 de abril e 18 de junho no Hospital das Clínicas da FMRP-USP.
As análises mostraram que nem todos os indivíduos tinham em seus leucócitos uma marcação expressiva para a presença do vírus e que a taxa de células positivas variava bastante entre eles – de 0,16% a 33,9%. “Os pacientes tinham perfis clínicos variados e estavam em diferentes estágios da doença, o que dificultou a comparação. Mas o fato é que conseguimos identificar a presença do vírus no interior das células mononucleares de portadores da COVID-19”, diz Arruda Neto.
O grupo selecionou amostras de 15 indivíduos para analisar as diferenças individuais nas taxas de células positivas para SARS-CoV-2. Para isso, os pacientes foram estratificados com base no tempo de coleta de amostra após o início dos sintomas. Essa análise evidenciou que as taxas de linfócitos B infectados foram as mais altas em todos os indivíduos. Isso poderia ajudar a entender por que algumas pessoas quase não apresentam anticorpos após a infecção – hipótese atualmente em investigação.
Já no caso dos monócitos, quanto mais avançada estava a doença, maiores eram as taxas de células positivas – resultado semelhante ao observado para os linfócitos T CD4.
Por meio de técnicas como imunofluorescência e microscopia confocal, os cientistas confirmaram a presença de uma fita dupla de RNA viral no interior das células infectadas – um indicativo de que o patógeno, cujo genoma é composto por uma fita simples de RNA, estava em processo de replicação.
“O conjunto de dados sugere, portanto, que o novo coronavírus pode infectar e se replicar nos linfócitos. Isso é um potencial complicador, pois pode deixar o paciente suscetível a infecções oportunistas e os hospitais estão repletos de bactérias resistentes. Os médicos precisam estar atentos a esse fato. Além disso, ainda não sabemos que tipo de efeito tardio isso pode ter no sistema imune, só descobriremos mediante investigações a serem feitas no seguimento dos pacientes convalescentes”, diz Arruda.
Agência Fapesp