“Perdi as vezes de quando entravam na sala, nem ao menos davam bom dia, só diziam que queriam falar com o juiz. Às vezes eu era ríspida, outras, virava a cadeira e dizia: ‘bom dia, eu sou a juíza’”. Quem conta essa história é Mariana Marinho Machado. Segundo ela, chegar a um cargo de tanta autoridade sendo mulher, negra e jovem parece que “confunde” as pessoas, mas na verdade, escancara um preconceito que tanta gente teima em dizer que não existe.
Aos 35 anos, Mariana é responsável pela comarca de Itainópolis, que atende também os municípios de Vera Mendes e Isaías Coelho. Natural da Bahia, Mariana já exerceu a magistratura no Pará e está no Piauí há sete anos. Atualmente, tem 2 mil processos distribuídos e já finalizou, somente neste ano, 980 processos.
“Hoje as pessoas já me conhecem na comarca, já estou aqui há dois anos, então essas situações são mais raras”, pondera. Mas a discriminação por seu biotipo físico sempre aconteceu. Ela conta que desde pequena ouvia comentários indesejáveis na escola, porém, foi depois que passou no concurso para magistratura que percebeu o preconceito mais presente.
“Eu sempre passei por situações como alguém falar do meu cabelo, por exemplo, na escola. Era bullying, mas não tinha esse nome. Mas eu senti mais o preconceito foi quando eu entrei na magistratura, porque é um lugar de autoridade. Várias vezes, quando me viam trabalhando pensavam que eu era assessora. Quando fui professora também senti os olhares. Na primeira vez que entrei numa sala de aula, as pessoas me olharam diferente. É tão institucional que as pessoas se assustam vendo uma mulher, negra, nova, juíza”, explica.
Mariana passou no concurso aos 27 anos, sem cotas. Mas defende o sistema de cotas para oportunizar a entrada de negros no serviço público. “Meus pais são negros. Sempre tivemos muito orgulho da nossa raça. Eu e meus irmãos estudamos em colégios bons. Quando eu fiz concurso não tinha cotas, mas hoje vejo que é necessário. Os negros são maioria no Brasil, mas são minoria em cargos públicos. Na magistratura somos apenas 1,6% no Brasil”, ressalta.
Para a juíza, o maior problema no combate ao preconceito é não aceitar que ele existe. “Quando você entra numa loja, as pessoas não vão para você, as vendedoras de lojas chiques não são negras. É assim que acontece”, resume.
No dia-a-dia, Mariana opta por uma vida mais resguardada, evita muita exposição, mas não abre mão de reagir à situações de discriminação e preconceito.
“Em casos de racismo e injúria racial, com certeza eu dou voz de prisão, mas nunca precisei chegar a isso. Uma vez, uma pessoa que trabalha comigo foi xingada e eu acredito que a pessoa queria atingir a mim, mas falei que isso geraria processo e fui atrás. Já julguei vários casos de racismo e injúria racial, vários”, destaca.
Especificamente com ela, a juíza lembra de uma vez que um advogado questionou sua capacidade de julgamento. “Um advogado começou a se exaltar e disse: ‘não sei se a senhora teria capacidade para julgar’. Ele queria buscar uma suspeição minha, mas eu não sou de perder a cabeça, até para ninguém dizer que não tenho imparcialidade. Só disse: ‘Doutor, o senhor não quer retificar o que disse?’. Um amigo dele deu um toque e ele se acalmou, voltou atrás”, conta.
Por casos como esses, Mariana sempre atende as pessoas na presença de alguém, nunca sozinha. “Nós, magistrados, sempre estamos no olho do furacão. Se eu faço qualquer coisa, até fora de casa, não é a Mariana, é a juíza. Então, me preservar é uma questão de segurança. Aqui no Piauí, além do racismo há também muito machismo e isso é refletido nos feminicídios. Aqui na cidade, chega um homem juiz, vai para academia e é normal. Chega uma magistrada, vai para academia é porque quer se mostrar”, compara.
“Às vezes ouço: ‘a senhora é tão nova, vem sozinha para o Piauí, como seu marido deixa?’ Como é que pode? Meu marido tem que deixar eu vir trabalhar? Isso não existe”, indigna-se.
Apesar de todos os desafios enfrentados, Mariana Marinho não tem do que se queixar da vida que leva hoje. “Aqui em Itainópolis as pessoas já se acostumaram comigo e me tratam muito bem. Eu fico lisonjeada com o reconhecimento, o respeito e o carinho. Fiquei 12 dias afastada cuidando do meu pai e quando cheguei ganhei um bilhetinho: ‘Que bom que a senhora voltou’. As pessoas me perguntam como eu aguento ficar no interior. É por todo carinho que recebo. Só peço muita saúde para eu conseguir fazer meu trabalho. Quando vou numa escola que as crianças me vêem, elas se sentem representadas, isso é gratificante. Elas sabem que elas também podem chegar lá”, declara.
Fonte: Cidade Verde