Pelo Código Penal, o aborto é crime em todos os casos, exceto se houver estupro ou risco de morte da mãe. Como o texto não trata de anencefalia, há anos juízes e tribunais têm decidido caso a caso sobre a interrupção da gravidez, em muitos deles, concedendo os pedidos. Em outros, a ação perdeu o objeto em razão da demora quando o processo chegava às mãos do juiz, o parto já havia ocorrido.
Foram tantos casos que a controvérsia acabou chegando ao Supremo. O tipo de ação é uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (utilizada para fazer valer um princípio da Constituição), apresentada em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde. Para a confederação, impedir o aborto nesses casos fere uma garantia fundamental: a dignidade da mãe. A decisão do Supremo deve uniformizar o entendimento dos tribunais, porém, pode não resolver o problema.
Para que o aborto seja totalmente permitido nos casos de anencefalia, e o procedimento não tenha que esperar por uma decisão judicial em cada caso, o Congresso teria de aprovar uma lei descriminalizando o aborto de anencéfalos. Atualmente, tramitam no Congresso duas propostas relacionadas ao tema, e nenhuma tem previsão para ser votada.
Autor de um dos projetos, o senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR) acredita que a interferência de setores religiosos prejudicou o Congresso brasileiro a aprovar até hoje uma legislação sobre o tema. Na avaliação dele, a decisão do STF irá "fazer perder o objetivo das leis", gerando uma jurisprudência sobre a questão.
“Se não temos uma legislação ainda sobre o tema, e o STF tem que julgar a questão, não foi por falta de iniciativa. Eu apresentei em 2000 um projeto que não andou por pressões e lobby de diversos setores religiosos", critica. "Eu sou médico, ginecologista e obstetra e, em 14 anos de profissão, nunca vi um anencéfalo sobreviver a mais de 48 horas após o nascimento."
Ainda conforme o senador, "a lei já prevê o aborto em caso de estupro e de risco para a mãe". "Só estamos para o caso de anencéfalos, em que também há riscos", defende.
“Os projetos estão parados não é porque são polêmicos, é porque a tramitação na Casa é cheia de obstáculos”, afirma o deputado federal Anthony Garotinho (PR-RJ), que integra a bancada evangélica no Congresso. “Tem projetos de dez anos que não saem do lugar e outras questões polêmicas que foram votadas. Tanto que estou propondo mudança no regimento da Casa.”
Para o deputado, a lei é clara ao proibir o aborto nesse tipo de caso, e, para ele, juízes que decidem o contrário estão desrespeitando o Código Penal. “Então eu temo que o Supremo, mais uma vez, vai legislar e, incorrendo, creio eu, em desrespeito à Constituição, eles devem permitir o aborto”, afirma.
“Não posso falar pela bancada, mas os anencéfalos, na minha opinião, se for permitido interromper a gravidez, vai abrir um leque de outras opções. Amanhã vai ser possível identificar uma criança com Síndrome de Down e outras deficiências. E essas crianças? Serão abortadas também?”, questiona Garotinho.
Eros Biondini (PTB-MG), um dos coordenadores da bancada católica, afirma que "a morosidade tem tirado do Congresso a prerrogativa de legislar". "Ainda que não seja intencional, essas decisões (do STF) têm sido tomadas com o intuito de resolver um problema, mas são ações legislativas."
O deputado afirma ser totalmente contra o aborto de qualquer tipo e que, "além de legislar, o Supremo está alterando a Constituição". "É verdade que há um embate nas Casas que acaba por realmente arquivar esses projetos abortistas, mas a morosidade é geral", diz.
Já a deputada Jandira Feghali, autora do único projeto que tramita na Câmara sobre o tema, "lamenta" a demora do Congresso em legislar sobre a questão.
"Eu sempre lamento o retardamento dessas decisões porque isso impacta na vida das pessoas. Minha proposta é de 2004. Na Comissão de Seguridade Social e Família tramitou rápido, mas está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) desde 2005", explica ela.
"A mobilização de diversos pensamentos filosóficos e religiosos sempre retarda uma decisão e isso é lamentável. O projeto de lei não é para obrigar (o aborto de anencéfalos), mas apenas ampliar direitos e opções da mãe", defende. "O que queremos é descriminalizar o aborto", diz ela, dando o direito à gestante de um anencéfalo de escolher se quer ou não interromper a gravidez.
Para o procurador regional da República da 3ª Região Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, a aprovação do novo Código Penal resolve o problema.
Relator do anteprojeto da reforma do código, ele afirma que o texto deve descriminalizar o aborto quando for comprovada a anencefalia ou a existência de doenças graves e anomalias incuráveis no feto, que inviabilizem a vida.
Gonçalves vê como “natural” a resistência de bancadas religiosas à polêmica. “Numa questão como esta, diversas opiniões filosóficas ou religiosas têm legitimidade. Mas a antecipação do parto é vista como um procedimento médico e não ético”, diz.
Segundo o procurador, o objetivo da mudança é deixar que a mãe tenha liberdade para tomar a decisão de levar a gravidez adiante nesses casos.
“Estamos propondo que não seja crime a antecipação do parto nestes casos, entre eles quando o feto não tiver cérebro ou tiver alguma doença que impeça a vida extrauterina. A minha ênfase é que a mulher possa tomar a decisão caso queira continuar a gravidez, mas isso não pode ser uma coisa imposta. O estado não pode obrigar esta mulher que quer ser mãe que leve a gravidez até o fim, com as dores da gravidez e as alegrias do parto, se ela não quer”, afirma.
A chamada "anencefalia" é uma grave malformação fetal que resulta da falha de fechamento do "tubo neural" (a estrutura que dá origem ao cérebro e a medula espinhal), levando à ausência de cérebro, calota craniana e couro cabeludo. A junção desses problemas impede qualquer possibilidade de o bebê sobreviver, mesmo se chegar a nascer.
Estimativas médicas apontam para uma incidência de aproximadamente um caso a cada mil nascidos vivos no Brasil. Cerca de 50% dos fetos anencéfalos apresenta parada dos batimentos cardíacos fetais antes mesmo do parto, morrendo dentro do útero da gestante, de acordo com dados da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).
Um pequeno percentual desses fetos apresenta batimentos cardíacos e movimentos respiratórios fora do útero, funções que podem persistir por algumas horas e, em raras situações, por mais de um dia.
Isso não significa possibilidade de sobrevida, explica o médico Olímpio Barbosa de Moraes Filho, presidente da comissão de assistência ao abortamento, parto e puerpério da Febrasgo. "Ele precisa do cérebro para comer, para respirar. Não há como respirar sem cérebro, por isso ele morre, no máximo, em algumas horas. A chance de sobrevivência é zero", diz Moraes Filho.
O diagnóstico pode ser dado com total precisão pelo exame de ultrassom e pode ser detectado em até três meses de gestação.
G1