Depois de sofrer quatro abortos espontâneos, a médica veterinária Lais Gontijo, de 36 anos, engravidou novamente. Preocupada em levar a gestação adiante e não perder mais um bebê, realizou um pré-natal hiper-rigoroso com um médico especialista em abortos de repetição e fez várias ultrassonografias para monitorar a evolução e o desenvolvimento do feto. Quando superou a barreira das 12 primeiras semanas de vida, período que normalmente ocorrem os abortos espontâneos, ela comemorou e fez a sexagem fetal para saber o sexo do bebê. Era uma menina: Donna estava a caminho.
Ao completar 16 semanas de gestação, com tudo transcorrendo como o esperado, a gestante marcou uma nova ultrassonografia. Ela queria filmar o exame para registrar a confirmação de que o bebê era uma menina. Ansiosa, a veterinária até tentou adiantar o dia e a hora do ultrassom, mas não conseguiu – realizou o procedimento em uma sexta-feira, 21 de dezembro de 2018, no final do dia. Era apenas mais um exame de rotina, mas logo no começo veio a surpresa: Donna tinha um defeito na coluna chamado mielomeningocele. Trata-se de uma malformação congênita que, se não diagnosticada e não tratada corretamente, pode afetar os movimentos da criança e o controle da bexiga e do intestino.
“O médico me disse que a Donna tinha mielomeningocele. Me explicou o que era com muita paciência, foi muito humano, me mostrou a bolsinha no final da coluna dela na imagem do ultrassom [a bolsinha é justamente a parte onde a coluna não se fechou corretamente]. A primeira pergunta que eu fiz é se ela ia morrer”, lembra Gontijo. O médico respondeu que não, mas alertou que o tratamento deveria ser feito o quanto antes em São Paulo (Gontijo morava em Goiânia), com uma especialista em medicina fetal. “Eu não conhecia nenhuma criança com mielomeningocele, não tinha ideia do que era esse problema. No começo, nem conseguia pronunciar o nome direito. O meu maior medo era de que Donna morresse, que fosse algo incompatível com a vida. Eu só chorava, não conseguia fazer mais nada. Fiquei deitada o fim de semana inteiro. Não queria ler nada na internet porque tinha a esperança de chegar em São Paulo e descobrir que o médico de Goiânia estava enganado. Mas não foi o que ocorreu”, lembra a veterinária.
Em São Paulo, o diagnóstico de mielomeningocele foi confirmado. A melhor opção naquele momento seria fazer uma cirurgia intrauterina para corrigir o problema e fechar o buraquinho na coluna. E foi o que Gontijo fez: no dia 11 de março de 2019, com 27 semanas de gestação, ela foi para o centro cirúrgico operar a coluna de Donna. A cirurgia durou cerca de cinco horas e foi bem-sucedida. Donna nasceu em maio.
Malformação ‘comum’ A história de Gontijo é apenas mais uma entre tantas outras envolvendo a mielomeningocele – uma das malformações congênitas mais frequentes, que atinge 1 a cada 1.000 nascimentos. Para comparação, estima-se que a síndrome de Down, por exemplo, afeta 1 bebê em cada 700 nascimentos. O problema não é tão raro, mas ainda é pouco discutido e, por isso, o dia 25 de outubro ficou conhecido como Dia Internacional de Conscientização da Mielomeningocele.
Segundo a obstetra Denise Lapa, especialista em medicina fetal do Departamento de Terapia Fetal Hospital Israelita Albert Einstein e responsável pela criação de uma técnica de cirurgia intrauterina minimamente invasiva (técnica Safer), a mielomeningocele (ou espinha bífida) é um defeito aberto do tubo neural, que ocorre pela falta de fechamento da coluna vertebral do feto nas primeiras semanas de desenvolvimento.
A coluna vertebral de um bebê que se devolve normalmente tem a pele, os ossos, as meninges e a medula espinhal – o fechamento total deve ocorrer até a nona semana de gestação. No bebê com mielomeningocele, os ossos não se formam corretamente, deixando uma abertura na coluna do feto. A partir daí, as meninges e a medula saem para fora e parte dos nervos ficam expostos ao líquido amniótico.
A exposição contínua da medula ao líquido amniótico leva a uma lesão progressiva do tecido nervoso. Geralmente, os nervos afetados são os da região lombar e sacral, responsáveis pela locomoção e pelo controle das fezes e urina. O diagnóstico costuma ser realizado com a ultrassonografia das 16 semanas de gestação, mas a suspeita pode ser apontada no exame morfológico do primeiro trimestre, feito entre a 11ª e 14ª semanas.
“Imagine que a coluna é um zíper vai sendo fechado no desenvolvimento do feto. Nos casos de mielo, o zíper não fecha até embaixo, fica um buraquinho aberto. Se esse buraquinho for fechado somente após o nascimento, os riscos de a criança não conseguir andar são muito maiores”, explicou Lapa.
Como é feita a cirurgia intrauterina Existem basicamente dois tipos de cirurgia intrauterina: uma chamada de céu aberto, em que é feito um corte na barriga da mãe, o útero é retirado para fora e o bebê é operado. Há um risco de ocorrer parto prematuro e, após o procedimento, o parto necessariamente deverá ser por cesárea.
No caso da fetoscopia (técnica Safer) desenvolvida pelo Einstein, não é feito nenhum corte na barriga da mãe e o útero não é retirado. A barriga recebe quatro furinhos e a cirurgia no bebê é guiada por uma microcâmera. Também há risco de parto prematuro, mas o parto pode ser por via vaginal.
Segundo Lapa, a técnica Safer usa um bioestimulador nacional para auxiliar no fechamento da coluna e possibilita que, com a correção do defeito, a motricidade presente no momento da cirurgia se mantenha. De acordo com a médica, ao se operar depois de nascer, somente 20% das crianças vão conseguir andar. Operando ainda no útero, pelo menos 50% delas vão caminhar normalmente.
Em dez anos desde que a técnica foi desenvolvida, a obstetra já operou quase 200 bebês dentro do ventre materno – somente um faleceu, por ter outros problemas de desenvolvimento. “Esses bebês operados precocemente certamente terão ganhos importantes para o seu desenvolvimento. Por isso chamamos a malformação de ‘nova mielo’, porque o prognóstico hoje é totalmente diferente de décadas atrás”, afirmou.
Gontijo e Donna são a prova disso. Donna surpreendeu as expectativas e se desenvolveu como qualquer criança para a sua idade: engatinhou com quase nove meses e passou a sentar sozinha com cerca de seis meses. Com 1 ano e 5 meses, começou a fazer fisioterapia porque ela ficava em pé, mas não dava passinhos – poderia ser medo ou algum atraso mesmo. “Com 43 dias de fisioterapia ela andou sozinha. Foi a maior alegria do mundo para todos nós. Aí ninguém mais segurou”, conta a mãe.
A outra preocupação da veterinária era com o desfralde da filha – ela tinha medo de Donna ter alguma sequela relacionada ao controle da urina e das fezes. Mandou a filha para a escola com 3 anos e meio ainda usando fraldas. “Falei para a professora observar essa questão. A escola foi me ajudando no desfralde e a primeira vez que Donna me avisou que queria fazer xixi eu queria soltar foguetes. Foi muita alegria. Conto nos dedos quantas vezes ela fez xixi na cama”, conta Gontijo, ao acrescentar que tudo o que a filha faz atualmente está de acordo com o desenvolvimento esperado para a idade.
“Hoje, quando lembro tudo o que passei, eu digo: se você receber esse diagnóstico, viva uma fase de cada vez. Eu sofri muita coisa por antecedência e hoje eu vejo que poderia ter sido diferente”, finalizou a veterinária.
Agência Einstein
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